terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Um dia comum

Bike Poa - foto do site da EPTC

Ocupar-se de planejar a reunião do dia vinte e sete, com uma recepção amigável ao gerente espirituoso e adepto das aliterações lhe pareceu uma boa ocupação, mas grande parte da organização só seria possível no dia vinte e seis. Assim, tinha dois dias inteiros a sós consigo mesmo, no apartamento bem mobiliado e sem árvore de natal. Era confortável ter dinheiro suficiente para pagar uma ceia pronta - o cheff da moda a entregaria as vinte e uma horas - mas isso deixava o dia completamente livre de obrigações, o que nem sempre é um alívio.

Apesar do calor escaldante Caio decide calçar seus tênis e trocar o ambiente climatizado pela rua.  Caminha na calçada coberta pela sombra das Tipuanas e Jacarandás, já sem flores, enquanto observa platibandas, janelas de madeira antiga, portões ferro ricamente trabalhados e as rotinas festivas nas casas que permitem a intromissão dos olhares vindos da rua. Bisbilhotar o natal alheio desperta uma inédita saudade do apartamento onde cresceu,  em São Paulo. O fato de ter se desvinculado da família o libertara das obrigações corriqueiras ligadas à data – viagens cansativas para a reunião com a tia de comentários ácidos; as compras que consomem um recurso vultuoso, melhor aplicado se direcionado a uma creche da periferia ou projeto de reciclagem; a preocupação com o preparo da ceia e uma mesa capaz de impressionar os convidados; emoções exacerbadas depois do terceiro ou quarto cálice de espumante rosado. Caio estava tão protegido desses desgastes como exposto à total falta de rumo.
Agora que começara a deixar a fase de viciado em trabalho para trás, não cogitava passar a véspera de natal no escritório, incorporando no projeto em que trabalhava sozinho, os insights que tivera no sebo do Bom Fim e durante a conversa com a velhinha que virou mochileira depois de enviuvar. Também não dispunha de tranquilidade suficiente para sentar-se na varanda do apartamento e ler o volume da edição original de Morangos Mofados que encontrara junto de outras preciosidades desejadas havia tempos - Orlando na edição da Horgarth Press, e Noite, de Érico Veríssimo.
O trânsito calmo fazia Porto Alegre parecer a cidade que Caio conhecera anos atrás. O arquiteto caminhava a esmo, volta e meia conferindo no smartphone os e-mails protocolares enviados por empresas fornecedoras e clientes; apenas um de cunho pessoal – a amiga Renata, agora morando no Rio, parecia excitada com a perspectiva de passar o Reveillon com alguém que conhecera há pouco; desejava ao amigo de infância que parasse de pensar tanto e pudesse rir um pouco mais e  convidava para visita-la, aproveitariam a praia e um bom tanto de ócio. Mesmo sem inspiração para responder na hora, Caio sentiu as palavras da engenheira soprarem ânimo em seus passos.
Com vontade de percorrer caminhos mais largos, Caio aproveitou a disponibilidade de bicicletas nas estações do BikePoa e buscou trajetos aleatórios, divertindo-se com o vento produzido em seu deslocamento. Queria apenas se cansar, ver a agitação alheia ir arrefecendo junto com a tarde.  

Antes de comer as porções servidas em requintadas peças de porcelana sem prestar mais atenção ao sabor do que às imagens que corriam na tela do tablet ou da televisão (sintonizada na BBC e com a tecla mute a tivada), Caio escancarou as janelas, desejou que chovesse e fez promessas de revolução para a própria vida. 


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