terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Logística

Primeira nota da pilha: Jogos Vorazes: Em Chamas, Porto Alegre, 500 cópias.

Segunda: Jogos Vorazes: Em Chamas, Curitiba, 600 cópias.

Brasília, 300 cópias.

A relação entre o volume de livros e o lançamento recente do filme nos cinemas passa pela cabeça rapidamente, o pensamento mal se forma. É necessário dar conta dos pedidos.

A Moreninha, Florianópolis, 10 cópias.

Ele para um pouco. É um bom momento para ir ao bebedouro buscar mais um copo de água. Carlos Alberto Moreira Leal bebe bastante água. Café, se estiver ao alcance; água ele vai buscar, várias vezes ao dia traçando o caminho entre sua sala e o bebedouro. Isso, é claro, quando passa o dia no escritório. Hoje é um desses dias. O escritório está Em Chamas.

Harry Potter e a Pedra Filosofal ele posicionou nas estantes, com pouco destaque inicialmente, depois dominando totalmente os espaços nobres da livraria nos Jardins. Em 2001, presenciou a apresentação de O Senhor dos Anéis a uma nova geração. Quando o fenômeno da vez era o primeiro Crepúsculo, ele enviava para a sede as encomendas da filial. Agora, como gerente de logística da rede, era responsável por atender, dentro do possível, os pedidos do Brasil inteiro.

Estava novamente em sua mesa, copo de água bebido.

A Moreninha, Florianópolis, 10 cópias.

Processa o pedido. Não há tempo para reminiscências. O Natal se aproxima e a pilha de notas ainda vai aumentar bastante antes de diminuir. Brasileiro deixa as coisas para a última hora. Muitos livros serão vendidos nas próximas semanas; ou pelo menos ele e sua equipe assim esperam.

Fim de expediente. Carro. Casa. Ou melhor, carro, engarrafamento, casa.

Mensagem da esposa no smartphone: “Tenho uma petição pra preparar, vou chegar tarde.”

Fim do engarrafamento. Agora sim, casa.

Antes de começar a cozinhar, liga a TV. Troca os canais. De repente, um videoclipe, ele reconhece a cantora. Não conhece a canção, deve ser mais nova. Maria Clara escutava as músicas da moça alguns anos atrás. Ele achava engraçado, era claramente música para meninas adolescentes, e ela já tinha 25 anos. Engraçado não é o termo. Achava meigo. Vêm à mente uma das canções, talvez fosse a favorita dela na época. Talvez fosse a dele, pelo menos dentre as que ela tanto escutava.

...Head first, fearless.

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Cacá conquistou o emprego na livraria quando estava na faculdade. Hoje, não consegue entender o que o tinha levado a cursar Direito. Dois semestres depois de começar a empilhar livros profissionalmente, trocou para o curso de administração. Tinha pensado em fazer especialização em Comércio Internacional, mas quando se aproximava da parte final do curso de graduação, o trabalho como gerente da filial da livraria o fez perceber que gostaria de trabalhar com logística.

Maria Clara entrara para a equipe antes de Cacá virar gerente. Ele se sentia sortudo por isso. Da primeira vez que comentou com a namorada, ela respondeu:

“Imagina o processo que eu ia tacar na livraria.” E deu risada.

Sim, ela cursava direito. Talvez ele tivesse se sentido um pouco intimidado, afinal havia abandonado a faculdade que ela cursava, mas sabia que o tinha feito por vocação, não por falta de capacidade. Além disso, embora ainda não fosse gerente da livraria, já era o funcionário de ouro. Todos  sabiam que, assim que a posição ficasse disponível, ele seria promovido. Dessa forma, sentia-se bastante seguro. E, de qualquer forma, não fora ele o responsável por contratar Maria Clara, nem tinha poder para demiti-la, e por isso não titubeou quando a convidou para sair pela primeira vez.

Não demorou muito e estavam namorando. Não era coincidência terem se conhecido em uma livraria – mesmo que como funcionários, não visitantes – ambos adoravam ler. Adoravam também comentar o que tinham lido. Cacá descobriu que, com todos os livros que ela tinha lido, nunca havia passado por A Moreninha. Obrigado a ler o clássico de Joaquim Manuel de Macedo na escola, ele supôs que assim tivesse sido para todos. No encontro seguinte, presenteou-a com a edição de capa mais bonita que encontrou.

Logo conheciam intimamente as peculiaridades um do outro. Ela encorajava o gosto dele por sistemas lógicos, soluções ideais, mover isso para cá, aquilo para lá, mais rápido, menor custo, o rei da eficiência. Ele chegava até a retomar um pouco do gosto pelo Direito quando a ouvia analisar as leis e os casos. Menos séria, mas mais adorável, a predileção dela por canções de menina. Não muito depois de ela desenvolver a paixão por Taylor Swift – e de ele começar a zombar dela por isso – ela obteve sua vingança.

“Até parece que cê não canta Hey Soul Sister bem certinho, toda a letra decor.”

“Mas Train é banda de adulto.”

“E Hey Soul Sister é música de menina.”

“Ah, é bonitinha, mas cê sabe que eu gosto mesmo é de Drops of Jupiter.”

“Tá bom.” Ela dizia, e ria.

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Janta preparada, ele desliga a TV e liga o computador. Responde a e-mails (de trabalho, claro). Revisa planilhas e memorandos do dia e começa a projetar as tarefas de amanhã.

Na hora de ir para a cama, resolve recuperar um pouco do atraso na leitura. Já não lê tanto quanto costumava. Nem ele nem ela perceberam a gradual diminuição. Em um dia qualquer, notaram que nenhum deles estava em dia com livros atuais. Haviam jurado remediar isso. Ela optou por Cinquenta Tons de Cinza. Ele, por Guerra dos Tronos. Não poderiam comentar os livros em detalhes desta vez, como costumavam fazer quando decidiam juntos que livro leriam a seguir.

Não vê quando ela chega, já está dormindo. Provavelmente não a verá de manhã, tem que sair cedo. Antes de pegar no sono, lembra de mais um pouco.

... You take my hand and drag me head first, fearless.

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