As repetitivas notícias da semana agora eram comentadas
pelo noticiário da TV a cabo da sala, que eu ouvia como um mantra da cozinha,
enquanto colocava a cafeteira elétrica para trabalhar, o forno do fogão para
pré-aquecer e me voltava para a mesa de mármore da cozinha para dividir o pão e
cortar as frutas. Era um café elaborado – para os padrões normais – que tinha
como intuito preparar meu estômago para o dia de treino, leitura, corrida e atualizações.
Retorno a atenção às notícias quando ouço o sucesso da saga The
Hunger Games. Sinto piedade das pessoas que se animam com o filme tão
simplório e não se presenteiam com a aventura da leitura. Da apropriação de detalhes
e minúcias tão específicas que as façam sentir as emoções e não em um
personagem na televisão, já delineado para parecer forte. Apenas parecer. Só
quem leu os livros sabe o quanto a protagonista e narradora Katniss luta para
se controlar ao máximo e dar um espetáculo ao público como forma de protesto. Mas ok, o livro também não é lá muito adulto
ou complexo para defesas veementes da minha parte.
Enfim, entre as divagações, o silêncio da cafeteira
elétrica indica preguiçosamente que o processo foi finalizado. Ao que dirijo
meu olhar para a temperatura indicada pelo fogão, já aquecido. Levo ao forno as
fatias de pão em quadrados com uma leve camada de queijo e um pouco de molho de
tomate. Dou-me ao luxo disto hoje, já que estou a semana inteira me dedicando à dieta intermitente que tento manter com idas à academia e corridas de 5km a cada três dias. Não é lá
muito saudável, mas é meu presente pelo esforço no trabalho que, jovem, me
tornou gerente tão cedo, temido e respeitado, com episódios de amizade com funcionários para manter o controle e pequenas alegrias que humanos simples adoram: contato físico e sorrisos.
Já estou de calça jeans e sapatos sociais. Sem camisa, caso
derramasse algo, eu observo pelo reflexo do microondas que meu ardor pela
leitura tem me diminuído os músculos. Prometo a mim mesmo refletir sobre isto e
ponderar nos horários.
Chamo-me Victor Eras. Solteiro, com casos furtivos e frívolos com clientes e
funcionárias das lojas que administro os Recursos Humanos (R.H.) da
internacional HyperBooks. 26 anos, administrador, pós-graduação em Gestão de RH
e uma média de 41 livros por ano lidos. Em papel.
Como uma correlação que causaria um medo apavorante em
qualquer pessoa inculta, o apresentador do jornal começa a falar sobre o
levantamento feito com jovens-adultos sobre aquisição de produtos como livros,
CDS e jogos. Ao que a maioria responde preferir o livro físico, papel. Informa
ainda que é uma questão de status também.
A estante pode induzir ao julgamento da quantidade de leitura. Os e-readers não.
Caminho para a sala com o prato com as torradas quentes
esquentando os dedos da minha mão esquerda, enquanto levo o café na mão
direita. Seria muito mais fácil e menos
doloroso levar numa bandeja, mas não daria serventia direta para aquela branca
mesa de centro que custou caro e geralmente não uso... Este meu hábito de
organizar o ambiente para outras pessoas me cansa e custa, mas vale o contato.
Ninguém sabe que sou muito mais prático e cerimonioso no dia a dia.
Sou assim mesmo. Descrevo o que faço para mim. Reflito e
reajo ao que penso. Planejo.
Percebo que levemente sorrio ao me
lembrar da seleção que fiz na semana passada. Dois indivíduos competindo para a
vaga de supervisor de seção. Um homem e uma mulher. Naquele dia quero bancar o
amigável. Do tipo que abraço e dou o "bote".
Faço-os sentar um de frente para o
outro e me centro no meio, voltado para a porta – odeio ser interrompido pela
vista do terceiro andar do prédio da Hyperbooks, planejado para encontrar os
prédios cinza e mortos, enquanto a área oposta, o café, era banhado pela visão
do jardim que era miraculosamente mantido vivo da ausência de umidade típica de
Brasília-DF.
Ambos sentados, sorrio ainda de pé e
dou-lhes boa tarde enquanto sento. Eles respondem um tanto embasbacados.
Provavelmente nunca viram uma entrevista dupla, ou seja lá qual nome teórico
poderia haver neste pequeno teatro que montei, cuja máscara, à moda grega, eu
usava do “selecionador-amigo”.
- Claudio e Inara – recosto-me na
poltrona e cruzo a perna direita sobre a esquerda – vocês estão conosco há mais
de três anos. Os dois. Ambos fazem relatórios mensais sobre as leituras e impressões
dos livros. Tem demonstrado conhecer as seções que lhes foram entregues aos
cuidados. Estamos muito animados com a avaliação de seus colegas – eles ficam
surpresos – Não sabiam? Lembram daquela pergunta sobre ‘quem vocês indicariam
para seu superior imediato’? Ela serve para isto. Uma medida formal para
avaliar como andam as relações entre os funcionários e ainda coletar votos.
Silêncio. O efeito que eu desejava
se alastrava tenso na sala. Eles não fazem ideia do jogo.
- Então, os dois tiveram quantidades
aproximadas de votos e tenho pesquisado seus relatórios de leitura. Claudio
gosta de livros de auto-ajuda – que piegas e previsível para um senhor de 49
anos recém-divorciado – e Inara gosta de investigação e romances históricos –
sempre a facilmente observável morena e curiosamente cheia de curvas.
Como ela lê
aproximadamente o mesmo número de livros de diferentes tipos e ainda pode ir à
academia, jantar comigo algumas vezes por mês e passar horas em meu apartamento
sem tocar em página alguma?
Ela era uma incógnita que eu deveria investigar mais. Ou
seja, eu deveria ajudar sua promoção para me aproveitar do sexo – ela me
deveria muito dele, claro – e para conhecer sua agenda ou planos. Ela poderia
ser uma boa aliada na minhas ascensão até um
cargo internacional na empresa. Mortalmente atraente financeiramente e com acesso
ilimitado a pessoas, países, culturas, enfim, a todo tipo de conhecimento que
eu prezo.
Claudio me olha tentando disfarçar
algo. Inara mantem o meio sorriso.
- Esta é uma entrevista para que eu
possa conhecê-los melhor e escolher quem ficará com o cargo de supervisor de
literatura fantástica. Vamos começar pelos relatos da Inara quanto à empresa,
como tem se sentido com os colegas, com a chefia e quais suas atribuições para
o cargo.
Obviamente eu já a tinha escolhido
antes de preencher a agenda requisitando a presença de ambos. Mas ele precisava
estar lá para ver, sentir-se mínimo em sua leitura ridícula e sem conteúdo, sem
cabedal para disputar com ela, uma jovem com belas curvas e não muito
sorridente um cargo que ele poderia facilmente alcançar em pequenas livrarias
pelo conhecimento.
Aqui
o que conta, como nos livros, é adquirir conhecimentos importantes sobre
pessoas, detalhes e ações. Não é a reflexão que o livro traz, mas é o caminho
que nos faz passar que nos leva
irremediavelmente – palavra que eu adoro – a saber que vendemos uma fantasia, um diferencial, e não uma pretensa
reflexão simplista com passos para a felicidade.
Livros, como a vida,
tratam de dor e métodos de superação em direção a um objetivo.
Mas era domingo, o constante jornal
que me fazia companhia com seu mantra continua falando, agora sobre futebol e
estas atrocidades das massas lépidas que se dedicam a torcer por algo que não podem
mudar.
É
risível como as pessoas acham que gritar afeta os jogadores. Eles provavelmente
não ouvem. Se ouvem, não distinguem. Se distinguem isto não afeta a velocidade
deles. Não é o público que interessa no campo. São os resultados.
Termino meu café. Observo que
preciso de mais café, contudo é apenas o hábito do escritório que me faz
continuar bebendo, mesmo ao final de semana. Levanto-me, então, para a
prateleira de livros-que-merecem-releitura – segunda prateleira de baixo para
cima – e escolho People, Places and
Things, de Stephen King. Adoro o conto The
Hotel at the End of the Road. O Museu Vivo é uma ideia excelente. Selecionar espécimes distintas que me sirvam
de propósitos diferentes continua meu objetivo diariamente. Observar, etiquetar para futuro uso.
Amanhã é segunda. Hoje tenho o dia inteiro para reler o livro escolhido, treinar meu personagem de amanhã na seleção de candidatos à vaga de vendedor que ficou vaga devido a escolha de Inara.
Provavelmente são candidatos jovens, desesperados por uma vaga. Com uma educação defi-ciente e que não leem mais de três livros por ano. Mas posso me surpreender, apesar de ser improvável tal ocorrência. Ou seja, eu poderia causar temor e alarde passando-me pelo oculto - já que eles provavelmente são ignorantes e religiosos. Serei sinistro e misterioso questionador de formas, cores e animais. Atitude que não tem comprovação alguma e serve para ludibriar incautos, mas que funciona bem para deixar uma impressão no ar.
Novos funcionários. Padrão de controle a ser mantido: rigor.
Provavelmente são candidatos jovens, desesperados por uma vaga. Com uma educação defi-ciente e que não leem mais de três livros por ano. Mas posso me surpreender, apesar de ser improvável tal ocorrência. Ou seja, eu poderia causar temor e alarde passando-me pelo oculto - já que eles provavelmente são ignorantes e religiosos. Serei sinistro e misterioso questionador de formas, cores e animais. Atitude que não tem comprovação alguma e serve para ludibriar incautos, mas que funciona bem para deixar uma impressão no ar.
Novos funcionários. Padrão de controle a ser mantido: rigor.
Sem comentários:
Enviar um comentário